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O Livro de Vento das Cigarras

Enquanto estiverem no ar, que possam permear meu peito—os mercadores de suspiros e esforços mais que perfeitos, menos que ideais—as forças inomináveis que sempre existiram e sempre existirão, jamais unidas posto que existem à revelia de qualquer saber que não seja liberdade.

Como a gente podia saber, antes mesmo do antes, que em algum depois pequenos caixas vibrariam sob asas resistentes e breves, fazendo ressoar no alagado um som como deve ser o do burilar de cada pequeno globo vermelho beijando em cada ouvido um assombro e um desejo, duas partes que não completam um todo mas anunciam mais e mais o desconhecido.

Eu sabia que a gente tinha olhos pra ver o verde, as asas velozes, mais acima de nossas cabeças, as pernas escamosas e as línguas, cada sabor, vibração e textura mediando aquilo que só podia existir entre a gente, tantos olhos e ouvidos em vigília por um seio compartilhado, tantas torres repletas de desconhecido a sugar a seiva das árvores. Cada chamado dos sapinhos da várzea um riso na orbe da memória, do tempo em que havia tantos pais e mais filhos ainda.

Por um instante tudo cabia em quadros de proporções distintas, limites infindavelmente finitos a anunciar as proezas do que não cabe em um bico, e do que é tão pequeno que pode transpor o mais denso dos muros. Cada construção milenar, composta aos bilhões de mãos dizia:

— afague a asa sutil com o coração, espraie no tempo o desejo, o assombro. Honre a tarefa das presas e das garras, as inventoras do corte. Com os olhos desenhe redes da mais fina seda prateada e permita que possam cruzar o ar a andorinha e a cigarra, tecelãs de altos casulos etéreos a presentear ao espaço o inefável.

No instante seguinte, tudo ardia de novo, as praias e os campos repletos de esculturas de vidro e cinzas, a água borbulhando ao encontro do ar.

Voltar a nós faz cada folha, cada orelha peluda e cada orbe brilhante se mover tão rápido e tanto como quem diz:

— me abrace, acredite que eu guardo em mim o segredo do fluir; quando nos encontramos o calor nos presenteia com o anseio de vida.

Nosso precioso repouso ocupa no todo um lugar possível apenas pela dignidade com que nos permitimos habitar o reino intocado, eu e você. Viajamos incansavelmente e agora é momento de deixar entrar sentidos tão antigos quanto o próprio sentir.

Nossas asas acomodam o emaranhado vibrátil que conta todos os segredos pra quem pode ouvir, pulsos que dissolvem formas de luz e evocam a ausência de cadeias, correntes, filos, linhas e tramas, nos tornando sempre mais alheies às causas e coisas. Eu ainda sou você? Como eu poderia saber? Porque isso já me fez tremer e chorar de medo, se muito antes de nós tudo era morno, úmido, todos os recantos ocupados pela dúvida fértil?

O ar se faz água doce e fresca, macia e gotejante, a promessa do fogo sublima a consciência de volta a seu lugar, a orbe de calor e luz anuncia tudo novo, sela a presença e encerra o próprio tempo; o silêncio pontilhado de mensagens reina mais uma vez. Nenhuma forma de luz, ou calor, ou frio ou friso ou aperto ou desequilíbrio ou partícula no ar ou na terra ou no rio das línguas ou no martelar das mentes ignora que, a partir de agora, é hora de nascer.